O GRUPO, SUSTENTAÇÃO E DETERMINAÇÃO DO PSIQUISMO

O GRUPO, SUSTENTAÇÃO E DETERMINAÇÃO DO PSIQUISMO
Ana P. de Quiroga

 O GRUPO, SUSTENTAÇÃO E DETERMINAÇÃO DO PSIQUISMO

 Ana P. de Quiroga

 

A investigação dos processos grupais, realizada tanto no campo da clínica como da formação, revela a presença e operação no grupo de fenômenos primários. Este fato abre interrogantes respeito a que formas e estágios do psiquismo remetem certas vivências, mecanismos e fantasias que emergem no dispositivo grupal.

A constatação sistemática dessa emergência nos leva a afirmar que a situação grupal provoca e convoca a atualização de sensações e imagos corporais arcaicas, vivências funcionais e de fragmentação, angústias primitivas, fenômenos de ressonância e de espelho, mobilizando-se nela o que alguns autores chamam identificação primária, outros núcleo aglutinado, co-sou, mas que em todo caso aludem as formas, mas arcaicas do ser, que é sempre ser-com-outro, em uma relação de unidade ou continuidade.

Dita atualização fala do psiquismo, do grupo e sua relação. Por que esta capacidade do grupo de convocar o arcaico? Por que a disponibilidade do psiquismo para reeditar suas formas primárias nesse espaço? Esta inter-relação parece assinalar que estamos ante fatos da ordem da configuração, o instituinte, o determinante. A temática do grupo reenvia a problemática do sujeito, uma vez que dialeticamente, a problemática do grupo nos remete à análise da subjetividade e sua gênese.

A investigação dos processos psíquicos primários e sua potencial eficácia na constituição da estrutura grupal propõe a questão da articulação de duas ordens de fenômenos: os atribuídos as formas primárias do psiquismo e os que fazem a essência do processo grupal. Tal indagação implica uma reflexão sobre a relação de mútua determinação entre estrutura grupal e mundo interno. A análise dessa dialética configura o espaço teórico pertinente a esta articulação, enquanto abre o caminho à compreensão de uma dupla função instituinte: do grupo no sujeito e do sujeito no grupo.

A pergunta acerca do grau de determinação dos processos pelas imagos arcaicas, pelas mais primárias fantasias e relações nos conduz por sua vez à pergunta inversa e simétrica: Qual é o lugar do outro, da interação, do vínculo, do grupo, na constituição do psiquismo? Ao interrogarmos pelos processos interacionais e sua eficácia chegamos à hipótese fundamental de nosso esquema teórico. Esta é o que o sujeito emerge e se configura na interioridade e por efeito de uma complexíssima trama de vínculos e relações sociais, as que por sua vez determinam aspectos da forma e conteúdo desses vínculos. Entendemos por vínculo uma estrutura interacional complexa que inclui dois sujeitos, sua mútua inter-relação efetivada em processos de comunicação e aprendizagem. Se funda motivacionalmente nas necessidades dos sujeitos e se desenvolve nas duas dimensões em relação dialética: a inter-subjetiva e a intra-subjetiva, o mundo interno em que se escreve essa rede interacional. O vínculo, se bem é uma relação bi-corporal, comporta sempre uma rede multi-pessoal implícita.

Protovínculo. Ao indagar os processos da gênese e constituição do psiquismo focalizaremos nessa complexíssima trama relacional que determina, uma instância particularmente eficaz e significativa, o protovínculo, estrutura interacional primária que operará como sustento e condição de possibilidade, junto a organização biológica, do psiquismo humano.

O protovínculo é uma relação assimétrica que compromete a mãe e o filho de maneira diversa. Uma se inclui nela desde a trajetória vincular na qual tem configurado sua complexa organização psíquica, como ser social que portará sobre seu filho, consciente e inconscientemente, a ordem das representações e significados sociais. O outro surge e se gesta nesse vínculo como sujeito bio-psico-social, adquirindo nessa relação fundante sua organização soma-psíquica.

A interação no protovínculo tem um código específico que se amplia, redefine e se faz complexa com o desenvolvimento. Neste código o corpo ocupa um lugar primordial. Nascemos corpo no seio de outro corpo (corpo implica sempre algum nível de psiquismo). Mas a instituição protovincular se desenvolve e está sustentada e normatizada pela instituição do grupo, sendo ambas totalmente determinadas. Pela grupalidade subjacente ao vincular, nascemos um corpo no interior de um grupo. Esta pré-existência do grupal é a que tem permitido afirmar que o grupo é o “locus nascendi do sujeito” (Moreno), matriz modeladora do psiquismo (Foulkes). O grupo, como instituição primordial é causa da organização grupal do mundo interno (grupo interno). O protovínculo é, na sua especificidade, uma figura metonímica do grupo originário familiar que subjaz a essa relação. Pelo lugar fundante do corpo no protovínculo, pela articulação primária corpo-mãe-grupo e pela função egoica ou de sustentação e continência, que estes últimos exercem e compartilham, o grupo poderá ser mais tarde, metáfora da mãe, metáfora do corpo fusionado, daquela relação primária e indiferenciada ou do corpo fragmentado, desestruturado, tal como se o experimenta no protovínculo, nos primeiros estágios do desenvolvimento. O grupo terá para o sujeito, entre outras, uma significação ao nível do analógico. Dali sua possibilidade de erigir-se como espaço transicional, de provocar, convocar e evocar vivências, processos e mecanismos arcaicos. 

Temos dito que o protovínculo se desenvolve em sucessivas etapas nas quais a relação se torna mais complexa e se redefine em um itinerário, que partindo desde uma unidade originária, culmina na individuação do sujeito que nele se constitui. Este vínculo primário se inicia com a vida intrauterina, em uma constante co-presença e permanente intercâmbio. Segundo Enrique Pichon-Rivière neste âmbito vincular o ser em gestação configura um proto-esquema corporal, pré-natal, rudimentar organização de sensações interoceptivas e proprioceptivas. A pele está submetida a estímulos permanentes pelo líquido amniótico e das paredes uterinas. Segundo Lapierre e Aucouturier as sensações são de dois tipos fusional, imerso no líquido amniótico o sujeito experimenta a textura desse meio invariável e do tecido placentário, envolvendo o corpo sem descontinuidade, o que se supõe produzir uma sensação de globalidade difusa e ilimitadamente gratificante. O protoesquema corporal pré-natal expressa o nível de organização psíquica alcançado na vida intrauterina, organização objetiva e essencialmente relacional por sua gênese, ainda quando se mantém em um estado de indiferenciação.

O protoesquema corporal pré-natal se desorganiza com o nascimento, redefinição radical das condições de existência. O recém-nascido perde seu estado prévio de globalidade fusional e é invadido por uma multiplicidade de estímulos desconhecidos. Esta descontinuidade com o prévio é registrada como privação (protodepressão segundo Enrique Pichon-Rivière). O corpo do recém-nascido é submetido a uma divisão originária, é um corpo necessitado, carente, que somente sobreviverá na sustentação do corpo e com o cuidado do outro, da função egoica desenvolvida no vínculo e no grupo subjacente e normatizada pela ordem social.

A perda da globalidade e continuidade intrauterina desencadeia vivências como a de carência do corpo ou de fragmentação. Sem embargo não proporciona algum acesso a diferenciação eu-não-eu. A unidade indiferenciada se mantém. Desde a experiência originária de unidade e desde a carência se gesta a necessidade de restituir o estado de completude, a fantasia e a busca de uma fusão que extinga a vivência de vazio e fragmentação. A necessidade do corpo do outro opera a vida toda e se manifesta particularmente em situações regressivas ou de alta intensidade emocional. Mobiliza-se como fantasia em alguns momentos do desenvolvimento grupal. A fusão é um estado sincrético de indiscriminação em que não há verdadeiro espaço de encontro, mas de englobamento. A vivência é a unidade de ser. O bebê não há podido delimitar por imaturidade biológica e monto de carência, o interno do externo. Por sua vez é um mosaico de sensações que somente poderá alcançar unidade pela função integradora do vínculo. Função de sustentação, discriminação e integração que não emergem somente da mãe – ainda que ela a veicule – mas que surge e se organiza em um contexto grupal e social. Esta função materna ou função egoica é um processo vincular-grupal que consiste em ser o sustento de ser do bebê, de seus processos de integração e discriminação, de apropriação de seus conteúdos e internalização de seu continente. Por esta função surge um psiquismo aberto sobre o mundo e constituído em permanente processo de sustentação e apoio. Na apropriação de conteúdos e internalização de seu continente vincular-grupal o sujeito poderá transformar seu espaço fusional indiscriminado em um espaço interacional mediado pelo gesto, o olhar, a voz, a palavra.

Neste espaço simbólico, social, o sujeito começa a reconhecer-se a si mesmo como integrado, relacionado e por sua vez discriminado pelo outro. A configuração deste espaço assinala uma troca qualitativa na organização da dimensão intrapsíquica do sujeito, a que denominamos mundo interno.

Temos dito que a reflexão sobre a relação dialética, de mútua articulação e transformação entre estrutura grupal e mundo interno, enquadra teoricamente esta análise da relação entre formas primárias do psiquismo e processos grupais.

Caracterizamos o mundo interno como uma complexa estrutura interacional intrapsíquica que resulta da inscrição e processamento no sujeito de sucessivas experiências vinculares. Nesta dimensão interna, reconstrução das redes relacionais objetivas nas quais o sujeito emerge e deslancha sua experiência, se articulam o self e os objetos internos com as características de uma formação grupal. A interação intra-sistêmica se desenvolve configurando uma dramática ou trama argumental interna, na que se acenam interpretando-as, as necessidades dos sujeitos e seu destino vincular-social. Este grupo interno, configurado por distintos mecanismos de interação, tem uma historicidade que nasce com as gêneses do sujeito no protovínculo e guarda marcas de suas formas mais arcaicas. Está submetido à operação das técnicas do eu e se constitui a partir da interação do grupo familiar primário, sustentação do ser do sujeito e do protovínculo.

O processo de constituição da subjetividade na sustentação e apoio de uma estrutura interacional, modeladora e integradora, determinante (vinculo-grupo), opera desde o começo da vida e se mantém ao longo dela, redefinindo-se em suas formas.

Alcançados os níveis mais complexos da organização psíquica, esta – por seu caráter essencialmente vincular-social, por ser um sistema aberto em relação dialética com a realidade – é uma gestalt-gestaltung em permanente movimento de modificação e integração. Isto faz da continência e da sustentação grupal uma necessidade onipresente. Grupo e sujeito cumprem um respeito do outro, com modalidades particulares, uma recíproca função instituinte e integradora, na que o sustento e modelamento são uma de suas formas.

Os distintos grupos de pertença do sujeito, nos quais desenvolve sua experiência cotidiana são, em tanto sistemas relacionados estáveis e normatizados, instituições que operam como sustento do psiquismo, enquadre e cenário em que se depositam e controlam as formas mais primitivas e indiferenciadas da personalidade, gestadas na organização grupal originária. Essa depositação permite que prevaleçam no sujeito e no grupo as formas de interação mais evoluídas e complexas. O âmbito grupal é um espaço comum de produção e intercâmbio no qual pode predominar a ordem simbólica sobre as ansiedades e fantasias primitivas.

Esta é uma das formas possíveis da dialética entre grupo interno e grupo externo. Mas por sua vez, a cena grupal convoca a atualização de sensações e imagos corporais arcaicas, fantasias fusionais e de fragmentação, vivências confusionais, de indiscriminação. Aquilo que havia sido depositado no grupo como enquadre passa a um primeiro plano como parte do processo grupal. Esta transformação ocorre naquelas situações nas que é colocada em questão a função grupal de sustentação. Mobiliza-se o continente e o conteúdo. Observamos esta dominância do primário no início do grupo, nos momentos de crises ou em situações de alta intensidade emotiva.

O grupo é significado então por seus integrantes como um espaço fusional substitutivo da perda de fusão ou indiscriminação corporal arcaica. Desenvolve-se uma ilusão de completude. Nesse momento regressivo se faz evidente, a partir de distintos símbolos: as ações, os gestos, os sons e eventualmente o discurso dos integrantes, a articulação profunda entre o grupo e o corpo materno, indiferenciado do mesmo, primeiro objeto de amor e conhecimento.

O objeto transicional transita - segundo Winnicott - entre o objeto interno, emergente de uma experiência real ou fantasiada e o objeto externo.  É um objeto real, que será significado e reinterpretado desde o mundo interno.

A situação grupal, essa realidade objetiva, é transformada por essa significação em substituição do corpo, em substituição do outro que completa e do qual se carece. Por sua presença nas gêneses do psiquismo no grupo tem uma particular disponibilidade para adquirir esse caráter transicional, analógico. Construir um grupo - disse René Kaes - é dar-se reciprocamente a ilusão metafórica de ser um corpo onipotente, não submetido a divisão nem a morte.

Se o grupo é vivido analogicamente como um seno cálido, lugar mítico de refúgio e segurança, desperta o desejo fusional de perder-se nele. Dão-se então momentos confusos com anulação do espaço relacional e perdida de limites tempo-espaço. Domina uma fusão ativa, na que se tenta anexar ao outro a própria necessidade, ao próprio pensamento. Deseja-se ser completado pelo outro. Por sua vez e contraditoriamente, emerge a angústia e despersonalização, o temor de ficar preso dentro do outro.

Os sujeitos instrumentalizam ante o desejo e a angústia fusional, a ansiedade persecutória, que introduz bruscamente nesse espaço de confusão e ameaça da identidade, uma discriminação organizadora. Esta tem uma função defensiva ante o perigo da atualização do mais arcaico do psiquismo e constitui, habitualmente, o aspecto manifesto da situação de início.

Se estas vivências, sensações e imagens arcaicas mobilizadas no processo de integração ou nas situações de crises, não podem ser novamente sustentadas, contidas e mobilizadas pelo contexto grupal; o grupo se desintegra e o sujeito foge ante o fracasso da função de sustentação.

A análise da atualização do arcaico na situação grupal abre um debate acerca do que com rigor pode ser definido como transferencial ou pré-transferencial, já que estes fenômenos primários, que reconhecem sua origem na constituição do psiquismo no protovínculo, são sempre relacionados, ainda quando o outro não seja reconhecido como objeto diferenciado.

A transicionalidade do grupo (o grupo como espaço transicional), determinada por sua presença na gênese do psiquismo e por seu caráter cênico, que promove o desenvolvimento do drama interno transforma o grupo em um âmbito privilegiado de desenvolvimento da dialética regressão/progressão, mundo interno/mundo externo, o que o converte num instrumento privilegiado de terapia e formação. Em síntese, de transformação.

   

Bibliografia:  

QUIROGA, Ana Pampliega de: El Grupo, Sostén Y Determinante Del Psiquismo em: Crisis, Processos Sociales, Sujeto e Grupo. Ediciones Cinco, pg 81-88, 1998.

Tradução: Ana Cláudia de Jesus Barreto

Revisão e Correção: Liliana Graciela Chatelain   

 


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