O SINISTRO, A DEPRESSÃO E O PROCESSO CRIATIVO[1]
Ana Pampliega de Quiroga
Com o convite para participar desta homenagem, chegou a proposta de expor alguma linha de investigação desenvolvida por mim a partir da estrutura grupal. Em um primeiro momento senti que essa temática não alcançava em mim a ressonância necessária, como também não a encontrava em “a concepção de sujeito” ou nos “processos de configuração do mundo interno”, temas todos elaborados nos últimos anos ou retrabalhados a partir das propostas de Enrique Pichon-Rivière.
Meu diálogo interno com Enrique Pichon-Rivière, com sua recordação, é cotidiano e pensava que uma homenagem, o encontro de alguns de seus discípulos para evocar sua obra, requereria de nós um esforço diferente, uma nova tentativa de síntese, uma nova forma de aproximação a Enrique Pichon-Rivière. Talvez lançar alguma luz sobre alguns aspectos pouco frequentados de sua obra.
A partir dessa ideia me perguntei que abordagem poderia fazer para estas jornadas. E analisando a temática que se desenvolverá com elas: a teoria da doença única, abordagem da psicose, processo criativo, surgiu a resposta. Trabalharei aqui com vocês outros eixos do pensamento de Enrique Pichon-Rivière, certas chaves de compreensão, e o faremos a partir de uma hipótese que o aprofundamento da leitura de sua obra, no conhecimento do ECRO Pichoniano, parece confirmar dia a dia.
Qual é esta hipótese?
A uma primeira olhada, a obra de Enrique Pichon-Rivière nos mostra uma grande heterogeneidade temática, uma vez que há uma multiplicidade de influências, de fontes, de campos de investigação. Enrique Pichon-Rivière trabalha, pensa, escreve sobre neurose, psicose, sobre aprendizagem, sobre grupo, estrutura familiar, instituições. Analisa os mecanismos da criação, mas reflete também sobre futebol, sobre comportamento político, sobre o rumor, as reações coletivas frente à emergência social, aos processos de migração. Em seu pensamento, em seu esquema conceitual são articulados aspectos da psicanálise, do surrealismo, da psiquiatria francesa, da fenomenologia, da dialética materialista, da psicologia social americana, da teoria de campo de Kurt Lewin.
A uma primeira olhada sua obra tem algo de colagem, por sua diversidade temática, pela multiplicidade de abordagens. Esta imagem da colagem, que me foi sugerida por Gladys Adamson, me parece particularmente reveladora, por sua aproximação ao pensamento de Enrique Pichon-Rivière, por sua íntima afinidade com seu estilo, já que a colagem era para ele uma das formas preferidas de expressão (cartas, presentes, formas de evocar um fazer). Mas a colagem, se tem qualidade estética, apresenta uma coerência interna. Na colagem há uma mensagem estruturada a partir de elementos diferentes, de distintos materiais, distintas texturas. Nela se encontram a matéria e a palavra, os elementos se combinam e complementam em um novo objeto, dotado de unidade interna.
Da mesma forma, na obra de Enrique Pichon-Rivière há um eixo, uma pergunta essencial. E essa obra se construiu com o desenvolvimento espiralado de uma resposta, cada vez mais abrangente e concreta. Sempre atada rigorosamente ao fio condutor dessa pergunta fundante.
Se não se compreende essa coerência interna, subjacente à heterogeneidade temática, corremos o risco de cair nas abordagens unilaterais, frequentes no nosso meio, naqueles em que a teoria sobre grupos é tomada isoladamente da concepção de sujeito e do psiquismo que a fundamenta, ou de uma visão dos processos de adaptação, abordagens nas quais se dissocia aprendizagem – processo criativo, saúde e doença. Não digo que essas abordagens, mesmo em sua unilateralidade, não tenham sido fecundas.
Tem alimentado a capacidade criativa de muitos. Enrique Pichon-Rivière foi um “semeador de ideias”, um “mestre socrático”. No entanto, nessa fragmentação, os instrumentos teóricos elaborados por Enrique Pichon-Rivière perdem sua condição de ferramentas de uma práxis totalizadora apoiada em uma ideologia científica, materialista e dialética.
Falamos de um fio condutor. Qual é? Enrique Pichon-Rivière o reitera em Conversações[2], uma de suas últimas voltas da espiral, refletindo sobre sua obra, sobre o destino de seu projeto. Esta síntese tem o valor particular de ter sido feita nos umbrais de sua morte, quando esta havia se transformado em uma possibilidade cotidiana. Diz aí: “Minha busca tem sido um saber do homem e mais particularmente sobre sua tristeza, tenho intuído que a tristeza está no fundo de todas as condutas chamadas “especiais” ... “creio que na minha vida não tenho feito outra coisa senão indagar o papel da tristeza, da melancolia na psique humana “. Indagação que é a de seu próprio mistério, saber que era seu próprio deciframento e que posto a serviço de outros, se constituirá como sua própria reparação.
Como chega a converter-se essa pergunta, pelo homem e sua tristeza, em uma concepção de sujeito? Como se transforma em uma elaboração sobre a gênese e o desenvolvimento dos processos psíquicos? De que maneira esta pergunta culmina em uma reflexão acerca da dialética homem-mundo, reflexão que define a doença como ruptura dessa dialética, como seu “congelamento “, como instalação no estereótipo, na repetição, na Pré-tarefa, na adaptação passiva? e como se define a saúde como aprendizagem, transformação, tarefa, criação?
Enrique Pichon-Rivière amarra, nessa dialética homem-mundo, desde o eixo da tristeza e do sinistro, os pares contraditórios da doença e seu polo antagônico, a criação. Este processo implica um caminho. Qual foi seu ponto de partida? Se pensarmos que um setor do real se privilegia como objeto de conhecimento, tanto se nos impõe como se nos opõe, quanto nos parece significativo tanto quanto problemático. O que tornou significativa e problemática a tristeza para Enrique Pichon-Rivière?
As vicissitudes de integração de duas culturas, a francesa de seus pais e a Guarani, de Goya, onde reside desde os 04 anos, o segredo familiar que o segrega*, segredo que silenciava uma morte não elaborada, as sucessivas experiências de duelo e de falta de raízes, que marcavam sua história familiar e das que se faz porta voz, e por fim, a morte de seu pai, no início da adolescência.
A primeira linguagem que Enrique Pichon-Rivière escolhe para essa indagação do homem e da tristeza é a da poesia. Aos 17 anos escreve:
“Te saúdo
Querido, pequeno e antigo
Cemitério da minha cidade
Onde aprendi a brincar
Com os mortos
É aqui onde tenho desejado
Revelar-me o segredo de
Nossa curta existência
Através das fendas
Dos antigos ataúdes solitários”.
Aqui temos um testemunho da elaboração de um duelo através da transformação, no ato criativo, do sinistro no maravilhoso. Há um conhecimento da morte através do brincar. Aqui são mencionadas duas cenas: a dos rapazes de Goya brincando no cemitério camponês e uma cena interna na qual ao aceitar a morte como possibilidade própria, o poeta pode “brincar” com os fantasmas. Com isso elabora a culpa, enfrenta o sinistro, essa particular vivência que emerge frente ao objeto destruído, perdido, danificado, ameaçador e pode restabelecer-se com o mesmo um vínculo operativo, sair da paralisia. Transformar a vivência de espanto, de caos, de horror frente à morte temida e alguma vez desejada do pai, rival e ao mesmo tempo admirado e querido, transformar essa vivência de espanto em um ato de conhecimento, em uma produção estética, na qual o objeto é recriado internamente Enrique Pichon-Rivière escreve em francês, retorna à língua materna e faz sua a paixão paterna por Rimbaud. Elege a linguagem poética desejada pelo pai, em um processo de identificação e superação. Esta experiência vivida em sua própria carne se transformará logo em objeto de investigação. Nesta 1ª obra de Enrique Pichon-Rivière já está presente a articulação entre: 1) perda; 2) tristeza; 3) o sinistro e sua elaboração na criação. Este é um período de identificações heroicas, momento necessário do processo criativo. Quem são então os heróis de Enrique Pichon-Rivière? Na infância, seu pai real, espírito inquieto e aventureiro, com uma particular sensibilidade para descobrir a beleza e uma figura mítica, a do cacique Guarani, protagonista desse mundo mágico, de contato com a natureza, de continuidade entre sono e vigília, protagonista dessa cultura que elabora seu duelo, sua submissão ao conquistador espanhol numa mitologia na qual dominam temas centrais como a morte, o duelo, a loucura, a metamorfose...
Na sua adolescência seus heróis seriam Lautréamont e Rimbaud. Então, seu herói é o homem que desce aos infernos, o sujeito da experiência limite, quem desafia aos seus fantasmas e entra em combate com eles.
*Descobre que seus irmãos são filhos da primeira esposa de seu pai, que voltou a se casar.
O destino dessa descida aos infernos, a regressão, o reencontro com o reprimido, com os objetos internos, a investigação do mundo interno, nesse momento desestruturado, caótico, o destino dessa viagem ao inferno, às profundezas interiores, pode ser a doença, a adaptação passiva, o ficar preso aos próprios fantasmas, ou pode ser, pelo contrário, a transformação interna e externa, a reparação, a criação.
No processo criativo (assinala Anzieu) o enunciado científico, a forma poética, musical, plástica é um ponto de chegada. O momento progressivo de um caminho que se iniciou com uma crise interior, que implica um momento regressivo no qual se mobilizam representações arcaicas. Daí a possibilidade da emergência do sinistro, como o reaparecimento do que em algum momento foi “familiar”, “íntimo”, e que foi reprimido, que ficou para trás como um período e uma forma arcaica do psiquismo. Algumas dessas representações são aprendidas e logo elaboradas, segundo um código que pode ser o da ciência ou da arte. Aí se objetiva o descobrimento, a criação, quando esta passa a ser uma mensagem compartilhada, com participação do grupo social daquele que é emergente.
Enrique Pichon-Rivière se identifica em sua adolescência e juventude com o Conde de Lautréamont, que é seu herói. Se encontra nesse jovem poeta, filho de franceses, que passou a infância na cidade de Montevidéu, acossada pelo estado de sítio.
Isidore Ducasse, que escreve sob o pseudônimo de Conde de Lautréamont uma das obras mais complexas da literatura francesa, oferece a Enrique Pichon-Rivière uma figura de identificação, pois assim como o outro viveu o contraste das duas culturas, as vivências infantis do perigo e golpeadas pelo segredo familiar, pela sombra de uma morte silenciada.
Os Cantos de Maldoror (assim se remete à obra de Lautréamont), quanto à manifestação do acontecer inconsciente, introduz na literatura o que até então se mantinha oculto, reprimido. Provocará por isso as mais opostas reações: será venerado pelos surrealistas como “culminação de toda obra poética”, considerando sua obra como “única na literatura universal”. Rubem Dario por sua vez escreverá: “O Baixíssimo o possuiu, penetrando em seu ser pela tristeza, seu livro é diabólico e estranho, brincalhão e ululante, cruel e penoso, um livro no qual se ouvem ao mesmo tempo os gemidos de dor e os sinistros guizos da loucura”. Por sua vez Ramón Gomez de la Serna afirmava: “Lautréamont é o único homem que ultrapassou a loucura, todos nós não estamos loucos, mas podemos ficar; ele, em seu livro se furtou a essa possibilidade, a ultrapassou”.
Essa obra fascinou Pichon-Rivière, e anos mais tarde realizou (única obra inédita de Enrique Pichon-Rivière) seu estudo sistemático, a partir de um esquema referencial no qual já se esboçava a teoria da doença única, a hipótese de que todas as formas clínicas são elaborações, formas elaboradoras falidas de um núcleo patogenético central subjacente, de natureza depressiva, isto é, ligado à privação, ao conflito de ambivalência, um conflito de amor/ódio pelo objeto.
Esse estudo lhe revelará a profunda articulação entre: 1) o sinistro, 2) o núcleo patogenético, 3) a saúde e 4) a doença. O que é o sinistro? Esse tipo particular de sentimento angustiado que, como assinalamos, surge quando, como sustenta Freud, “algo que deveria permanecer oculto se manifestou”. O sinistro é a vivência que se dá quando o que deveria permanecer oculto, tanto quanto reprimido, retorna. Mas isso que retorna, e que nos provoca a vivência do insólito, do estranho, é algo que em algum momento da nossa vida foi familiar, íntimo. A repressão o tornou estranho. E aquilo que reaparece se acreditava já superado, deixado para trás. Em síntese, para Freud o sinistro, como sentimento, como forma de sensibilidade emerge quando complexos infantis reprimidos (ex. a castração) são reanimados por uma impressão exterior, ou quando convicções reprimidas superadas parecem achar confirmação (onipotência das ideias).
O estudo da obra de Lautréamont, da mesma forma que a prática clínica revelará a Enrique Pichon-Rivière, como dizíamos, a articulação entre 1) o sinistro, como emergência súbita, como inesperado reencontro com o objeto amado-destruído pela própria hostilidade, o reencontro se dá a partir do fator ou privação desencadeante, atual, mas esse reencontro remete à intolerável contradição amor/ódio vivida no momento mais álgido do conflito de ambivalência. A regressão faz reviver o conflito desgarrador da posição depressiva infantil e as tentativas de elaboração da mesma num interjogo de momentos de dissociação do objeto, em uma apelação aos mecanismos de posição instrumental pato-plástica ou esquizoparanoide e a integração. Esse conflito inicial de ambivalência operou em Lautréamont como ponto disposicional, ao perder sua mãe, possivelmente por suicídio (hipótese de Enrique Pichon-Rivière), quando tinha um ano e meio de vida.
Dizíamos que esta obra revela a íntima relação entre: 1) a perda, 2) a tristeza, 3) o conflito amor/ódio pelo objeto, 4) o sinistro e 5) a criação como caminho de elaboração da perda e da vivência do sinistro, criação, reconstrução do objeto como adaptação ativa, resolução do conflito.
Na obra de Lautréamont “posta em cena” Enrique Pichon-Rivière encontrara, desdobrado, o drama interno, a crônica interior da realidade do sítio, na qual carregava para Montevidéu, a experiência cotidiana desde a matéria prima até as fantasias de destruição mais radicais.
Assinalo com isto, que Enrique Pichon-Rivière nesse outro campo de investigação, que é o da análise da obra poética, ou plástica como o faz com Picasso, ou com Batle Planas encontrará, na essência, a mesma estrutura que lhe revela a indagação do vínculo transferencial, no trabalho com pacientes chamados psicóticos ou neuróticos. Qual é essa estrutura? Um sistema, um mundo ou um grupo interno, cenário interior, dimensão intra-subjetiva, no qual se articulam múltiplas imago, personagens relacionados por um drama, uma trama argumental. Sendo essa estrutura, esse mundo interno, não resultante de um jogo instintivo, senão uma reconstrução interpretativa da rede vincular na qual transcorre a experiência cotidiana. Nessa experiência é fundamental não só a ação do sujeito que busca o objeto, mas também a ação concreta do outro, do objeto, que se move, efetivamente em direção à gratificação ou à frustração, marcando a experiência do sujeito.
Enrique Pichon-Rivière descobre que Lautréamont, genial para uns, alienado para outros, não é senão o porta voz de um grupo familiar, de um setor em um contexto histórico e social. Sua obra reflete, como um espelho, sua vida, seus vínculos e as relações sociais de seu tempo. Assinalamos que o caminho de Enrique Pichon-Rivière, como todo caminho do conhecimento segue uma trajetória em espiral. Na adolescência inicia uma busca na qual se articulam como objeto a tristeza, a loucura e a criação. Busca de chaves e deciframentos. Seu objeto é então o homem, mas um homem sujeito da experiência limite, seu caminho será então o da psiquiatria. Nos últimos anos, processada sua prática, poderá definir como objeto o homem cotidiano, aquele que fora revelado, na indagação da experiência da doença e da criação, como o porta-voz de seu contexto vincular social. Aquele ao qual em seus últimos anos, no último período de desenvolvimento (1966-1976) caracteriza não mais apenas como homem em situação, mas como o produtor, agente e protagonista da história, e por sua vez, sujeitado, produzido, determinado por suas condições concretas de existência. Seu ponto de chegada é então uma psicologia, a que ele define como social, a partir da concepção de sujeito, elaborada através dessa grande prática clínica.
Para sintetizar, Enrique Pichon-Rivière realiza uma busca: o saber do homem e da tristeza, mas um saber não passivo, e sim um saber destinado a transformar, já que para ele “quem aceita a tristeza, renuncia à plenitude da vida”.
Essa busca se desenvolve em diferentes âmbitos do conhecimento, atento às ressonâncias que promovem nele a plástica, a psiquiatria, o esporte, a literatura, a sociologia, a teoria da história, da filosofia, da antropologia e a psicanálise. Aparecem agora outros mestres, outras figuras de identificação. Roberto Arlt e sua lúcida análise do cotidiano. Lênin, de quem incorporará a dialética, a concepção de desenvolvimento em espiral. Freud, com cuja teoria tomou seus primeiros contatos na adolescência. Sua investigação vai sendo processada a partir de todos esses fundamentos, que vai delineando um ECRO.
Essa indagação é a que lhe revela que o homem se constitui em uma relação dialética, de determinação recíproca com o mundo. Aí, nas formas dessa dialética estão as chaves da saúde e da doença, como também da tristeza e de todas as vivências humanas. Sua tarefa psiquiátrica se inicia a partir de uma sólida formação no campo da neurologia e na corrente psiquiátrica francesa, a mais avançada nesse tempo. Sua imagem da medicina era a de uma “medicina total”, que pudesse superar o obstáculo epistemológico da dissociação mente-corpo. Mas isto se lhe torna chave para a compreensão do processo do adoecer, o conhecimento da teoria psicanalítica, a partir de sua conceptualização dos processos inconscientes e em particular a noção de conflito psíquico. Gostaria de assinalar que está noção de conflito se transformará em um eixo do pensamento Pichoniano, eixo no qual integrará a compreensão psicanalítica, os fundamentos da psiquiatria dinâmica, com uma concepção dialética e materialista da realidade. Assim esta concepção vai se transformando progressivamente no fundamento do ECRO, o levará a conceptualizações de sua prática clínica, a descobertas que implicarão uma ruptura com a ortodoxia psicanalítica.
Por exemplo, com hipóteses freudianas sobre o desenvolvimento, particularmente as que são apontadas em Os Dois Princípios do Acontecer Psíquico e em Mais além do Princípio do Prazer (o psiquismo como sistema fechado, o instinto como força essencialmente regressiva). A partir do conceito dialético de necessidade traçará a polêmica com a hipótese instintivista. Isto implica não só as divergências com Freud, mas também com as suposições mais idealistas de Melanie Klein, em particular com todas as concepções inatistas, o inatismo da fantasia inconsciente como “correlato mental do instinto”, o inatismo dos mecanismos de defesa. Isto implicaria, naturalmente, sucessivas retificações de seus próprios desenvolvimentos. Por exemplo, as propostas que faz nos últimos anos sobre proto-depressão, que de ser considerada a primeira situação ambivalente, passa, em Neurose e Psicose, a uma teoria de doença*, a caracterizá-la como situação ambivalente. No ano de 1966, que a meu entender inaugura uma nova etapa do pensamento Pichoniano, sustenta que a linha terapêutica que pratica poderia definir-se como análise dialética, na qual propõe a análise das contradições do sujeito. As internas e as que vivem em sua relação com o meio. É a partir da impossibilidade de resolver essas contradições que se gera a doença. O que mais quer significar Enrique Pichon-Rivière quando diz que alguém adoece por amor e por ódio? Aí assinala que o núcleo patogenético encerra uma contradição básica não resolvida, já que está subjacente a um conflito de ambivalência não elaborado.
Esta contradição é a tristeza que dá lugar à patologia, tristeza pelo objeto destruído, tristeza, caos, culpa. Esse é o mal dolor (mala dor), que Enrique Pichon-Rivière entende aludido em Los Cantos de Maldoror. Nem toda tristeza, nem toda perda geram patologia, senão aquela na qual o objeto, fantaseadamente destruído, fragmentado, não pode ser novamente integrado, quando não se tolera a presença da contradição no sujeito, no objeto e no vínculo. Aí é quando o sujeito se instala na Pré-tarefa. O que é então a tarefa da cura? Diz Enrique Pichon-Rivière: “A situação patogenética depressiva chega a se resolver através da criação progressiva do objeto. Essa será a tarefa essencial. Voltar a dar vida ao que foi destruído, e que perturba uma boa leitura da realidade. “Essa reconstrução é a essência da criatividade. Mas estes são pontos de chegada. O ponto de partida, “as concepções freudianas”. Mas, inscrito em uma tradição psiquiátrica inaugurada por Griesinger, que busca um núcleo comum, único, do qual se derivam as distintas formas clínicas, polemiza com Freud, para quem seriam diferenciados os conflitos subjacentes à psicose e à neurose. Para Freud, a neurose é conflito Ego/Id, a serviço do superego e a psicose é conflito Ego/Realidade a serviço do Id. Para Angel Garma e Enrique Pichon-Rivière o conflito é Ego/Id a serviço do superego em ambas as situações de repressão instintiva.Para Enrique Pichon-Rivière, psiquiatra com formação psicanalítica, empenhado, como dizia Freud, em lançar uma olhada sobre o muro do narcisismo, da psicose, empenhado na realidade, em realizar uma abordagem terapêutica a partir da compreensão psicanalítica da psicose, será de fundamental importância o conhecimento de Melanie Klein e sua Escola, seus fundamentos sobre o precoce, fantasia inconsciente, narcisismo, transferência, as hipóteses sobre a inexistência de um período psiquismo anobjetal. E também será fundamental o conhecimento da obra de Fairbairn, que também defende a ideia da existência de um núcleo patogenético (esquizoide) e que define a libido como “buscadora de objeto” e o psiquismo como um sistema aberto para o mundo externo.Apoiado nos fundamentos da psicanálise dos anos 50, que por sua vez recorrem às elaborações da fenomenologia, à psicologia concreta de Politzer, à teoria de campo, à relação organismo-situação de Lewin, Enrique Pichon-Rivière trabalhará sobre novos instrumentos teóricos, que lhe permitirão dar conta de achados clínicos. Quais? Por exemplo o de que a estrutura e a dinâmica do mundo interno do paciente guarda relações de causalidade dialética com a estrutura e dinâmica de seu grupo familiar, cujas formas de interação geram nesse momento patologia. Que a doença é um emergente grupal-familiar, sendo em consequência o doente o porta-voz dessa estrutura e constituindo assim, a família como a unidade de análise do processo do adoecer. O porta-voz por sua vez não se inclui como vítima, mas como um sujeito que não resolveu adequadamente suas contradições, seu conflito de ambivalência, analisando-se, a partir disso, de que maneira a interação familiar tem permitido ou obstaculizado essa resolução.
Enrique Pichon-Rivière investigará a partir destes achados as leis internas da estrutura familiar, e esta investigação o conduz à análise da relação entre grupo familiar e estrutura social, relações sociais, já que as relações sociais se acham contidas a nível superestrutural, sendo os vínculos determinados em sua forma, pelas relações sociais.
Chega assim a essa concepção do sujeito, determinado socialmente, configurado em uma complexíssima rede de vínculos e relações sociais.
Bibliografia
Freud, S., Hoffman, E., Lo siniestro. El hombre de la arena. Ed. Homo Sapiens.
Anzieu, D., Psicoanálisis del genio creador, Ed. Vancú.
Pichon-Rivière, E., El Proceso Grupal, Ed. Nueva Visión, 1975.
Pichon-Rivière, E., La Psiquiatría, una nueva problemática. Ed. Nueva Visión, 1980
Pichon-Rivière, E., El Proceso creador, Ed. Nueva Visión, 1975.
Artigo extraído e traduzido para o português do livro de Ana P. de Quiroga, – Enfoques y Perspectivas en Psicologia Social, Ediciones Cinco, Buenos Aires, 1986.
[1] *Intervenção na Jornada de Homenagem ao Dr. Enrique Pichon-Rivière ao completar-se o quinto ano de seu falecimento, organizada pela Sociedade Hebraica Argentina em 12 de outubro de 1882. Reproduzido da revista Temas de Psicologia Social Nº 5, novembro de 1983.
[2] Zito Lema, V., Conversaciones com Enrique Pichon-Rivière, Ed. Cinco, 1985.
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